Crônicas de um Lápis - Capítulo I
I - Corações de Letras
Num dia de verão, o Lápis passeava tranqüilamente com a Borracha, sua amiga de longas datas. Eles caminhavam entre os arvoredos de papel picado, sentindo um vento suave que vinha das bandas ensolaradas da margem direita da folha de papel. E por ali admiravam a grama de papel couchê que havia crescido bastante para a época do ano.
- Amigo Lápis, ontem soube pelo seu primo, Compasso, que está treinando a caligrafia e até mesmo o desenho em cadernos importados - comentou a Borracha.
- Puxa, esse meu primo sabe se espraiar mesmo, viu? Era uma surpresa! Mas tudo bem já estava na hora de contar - e soltou uma risadinha meio sem graça.
A Borracha riu ainda mais alto pela cara que ele fez.
- Só não pense que o Compasso seja linguarudo - adiantou ela com um largo sorriso.
- Não!
- Para ser justa, devo confessar que usei uma senha mágica com seu primo. Aí ele não resistiu.
- Senha mágica! O que quer dizer, criatura? - e a olhou com interesse.
- Ora essa, disse que você estava sumido... Bastou isso! Bem, quer dizer... muito sumido!
O Lápis gargalhou nesse momento e ela não se aguentou também. Quando pararam, curiosoa, a Borracha logo perguntou:
- Sim, mas como tem sido isso? Conte-me tudo.
- Ah, não existe mistério, apenas tenho treinado todos os dias horas a fio - disse ele com orgulho.
- Todos os dias! - admirou-se ela.
- Sim, por que a admiração? Só se aprende com a repetição, é fato. Nada se consegue sem um bom exercício, um bom treino - sentenciou ele, respirando fundo.
-Eu sei! Está me estranhado? Fiquei espantada foi com sua dediação.
- Ah bom!
Permaneceram um pouco em silêncio, observando o movimento das ruas entre as linhas azuis no centro do caderno.
- Então está no caminho certo, amigo. - Prosseguiu a Borracha, que agora admirava as flores de papel glacê num jardim próximo de onde estavam. - Sei que seu sonho é ser campeão da escrita ou do desenho, não é mesmo?
- Desde que eu era um Lápis sem ponta, sonho com isso.
Ela o olhou com mais estima, emocionada pelas palavras firmes e valorosas.
- Isso é maravilhoso! E uma coisa é certa, seu corpo magro e esbelto é típico de um atleta.
- É verdade, nunca deixo de agradecer a essa minha condição, porém isso não basta, amiga Borracha - anunciou ele de modo sério.
- Sim, sim, eu imagino! Mas saiba de uma coisa, você é bom no que faz, embora eu possa ser suspeita em falar por causa de nossa amizade.
Ele fez menção em comentar algo ali, mas a Borracha continuou.
-A prova disso são as belas letras e os graciosos traçados em qualquer tipo de papel. Todos o elogiam nisso. E na escola fez a mais bela campanha de todos os tempos, inclusive, mostrando a importância da escrita à mão para o desenvolvimento do cérebro. Saiu em rede nacional suas letras e desenhos para incentivar os estudantes a escreverem mais à mão. Você foi o único ser convidado para mesa redonda com os maiores educadores desse país do Caderno. Isso é pouco?
- Foi sorte!- adiantou ele.
- Sorte nada! Não me venha com essa. E tem mais?
- O quê?
- Ora, cada vez menos me pede ajuda. Você é muito bom e ponto - anunciou ela com desprendimento.
- Será mesmo, amiga? Penso às vezes que é um exagero quando me falam essas coisas. Esses dias, meu meio-irmão, o Lápis de Cor, que mora nos Estados Unidos de Todas as Cores, elogiou-me de um jeito que fiquei envergonhado- replicou ele.
- Não é exagero não. Deixa de besteira, moço! É lindo ver você escrever, parece mais uma dança de valsa sobre um papel transparente e iluminado. E sua eficiência é de tirar o fôlego. Sou a prova disso.
Ele agradeceu aquelas palavras entusiasmadas, sentia-se aliviado e contente, mas ficou um pouco pensativo sobre sua vida. Algo o inquietava. E logo se manifestou.
- Sabe, amiga Borracha, preciso que me fale uma coisa com a maior sinceridade. E não há ninguém melhor para isso.
- Claro, diga.
- E do que você não gosta? O que é ruim?
Ela arregalou os olhos e ficou um pouco corada.
- Ah, você também faz cada pergunta! Puxa! Conseguiu me deixar sem graça.
- Bem, tenho que saber onde estou falhando para me corrigir, afinal não quero lhe dar trabalho - e soltou uma risadinha.
- Não por isso certamente - riu a outra.
- Evidente que não! Até porque sei que você tem a maior disponibilidade em me ajudar. O principal mesmo é ser mais eficiente, buscando uma maior qualidade no que faço. Será de grande valia sua avalição.
- Hum! Tudo bem... tem sentido o que disse. Serei o mais sincera!
- Sabia que podia contar com você. Sempre!
- Claro, quando quiser. Bem, deixe-me pensar um pouco, afinal eu apago tudo que está incorreto, por engano, ou até o que está correto - anunciou ela, procurando se lembrar de todas as letras feitas pelo amigo e quais que ela mais apagava.
- Não tem problema, fique à vontade. Temos tempo.
Depois de alguns minutos disse:
- Talvez seu "R", varie muito, como se sofresse uma dor de cabeça constante e fosse fotofóbico; o "T" mais parece um telhado de um estádio de futebol, pouco protege da chuva ou do sol num dia de jogo; o "H", deixa-me ver, hum... Já sei! Um elevador em que o traço do meio nunca pára no andar certo; o "W" é o pior de todos, parece um "M" que tomou uma queda escandalosa numa casca de banana...
Parou um pouco de falar e olhou para o amigo com alguma expectativa e os olhos apertados.
- Talvez esteja sendo um pouco dramática, não é mesmo? - disse ela finalmente, sentindo-se um pouco culpada.
- De forma alguma! Eu estou gostando de suas análises e críticas. Continue, por favor.
- Bem, se é assim! O "K", quando aparece, só vive mancando e repetindo para qualquer um que queira ouvir: "não sou desse alfabeto. Sou um estrangeiro". O que é um absurdo, pois isso não existe mais! Dos numerais, o "8" vive enrolado e o "9" é um balão perdido no céu.
- Está vendo! Quanta coisa eu preciso melhorar, quanta coisa aprendi hoje - concluiu o Lápis, abraçando a amiga.
- Nem tanto. O resto é muito bom ou excelente. Não tenho o que dizer - completou a Borracha.
- Será?
- É sim. Acredite em mim! - afirmou ela encarando o amigo.
- Tudo bem, acredito. Mas sabe, estou pensando aqui com minhas arestas, fiquei agora curioso em conhecer a sua opinião sobre as letras minúsculas, pois nada falou sobre elas.
Nesse exato momento, eles estavam próximos a uma biblioteca pública com belas colunas de papel reciclado.
- Bem, com relação às minúsculas, acho que você tem que ter cuidado com o "l", pois muitas vezes mais parece um "e" de pernas cumpridas; o "d" faz lembrar um porquinho obeso, por isso merece uma dieta rigorosa e exercícios para desenvolver o corpo dessa letra; o "q" lembra uma letra enforcada, condenada por ter roubado um ponto e se fingido de "f"; por outro lado, o "f' mesmo, como vítima da malandragem do"q" , por vezes, aparece chorando na linha de baixo, muito tímido; o "z" "deu a maior zebra" na hora de se apresentar, talvez parecendo uma galinha despenada, o tipo que é expulsa do poleiro por sempre ficar brigando. Acredito que é só - parou um instante, refletindo algo, bateu na própria testa e disse: - ah, quase ia me esquecendo do sinal de interrogação, este mais se assemelha a um anzol com isca.
- Pronto! Agora sei todos os meus pontos fracos. Puxa você daria uma ótima professora, treinadora ou instrutora - concluiu o Lápis espontaneamente.
- Você acha mesmo?
- Mas é claro! Nunca conheci alguém com tanto jeito para isso.
Andaram até um ponto de ônibus de cartolina cartonada, porém logo desistiram de tomar o transporte e continuaram caminhando pela avenida das Letras Maiúsculas, aproveitando mais daquele dia claro.
- Quando haverá uma competição? - perguntou a Borracha.
- Sei que tem uma para acontecer num desses festivais - disse ele, tentando se lembrar de algum torneio mais próximo.
- Essas coisas é melhor perguntar ao Calendário - atinou ela.
- Tem toda razão. Contudo, desconfio que seja ainda neste mês.
- Se assim é, vou chamar toda galera do bairro do Rodapé para torcer por você - comentou animada com a possibilidade ver o amigo disputando uma prova tão importante.
- Calma, ainda estou me preparando - riu ele.
- Prepare-se então, pois sei que a turma do estojo irá em peso para prestigiar você quando souberem - declarou a Borracha, sorrindo.
- Que responsabilidade!
- Nem pense nisso. São nossos amigos e eles se divertem tanto nesses torneios. Muito mais do que quem está competindo.
- É verdade.
Dobraram a esquina e seguiram pela avenida das Entrelinhas, e ali encontraram uma pequena praça, muito bonitinha mesmo. Composta de jardins coloridos de cartolina e luminárias de papel vegetal. Toda a estrutura fora construída em cima de papel reciclado, além de garrafas e latas recicladas com esmerado brilho. Já os bancos foram feitos em papel crepom com detalhes em papel acetinado, o que dava a praça um aspecto moderno e, ao mesmo tempo, confortável.
- Vamos sentar um pouco - sugeriu a Borracha, apontando para um dos bancos.
- Ótima idéia - aceitou de imediato o Lápis.
Por uns instantes, ficaram olhando quem passava, admirando também a pracinha muito bem cuidada. Perceberam que ela fora reformada recentemente e agora estava bem melhor.
- Amiga Borracha, como seria bom se reformassem todas as praças.
- Nem fale, amigo Lápis, esta aqui ficou excelente. E veja, quanto cuidado com as árvores de papel picado e as flores de papel de seda e de papel glacê.
- Eu observei isso também, muito legal.
Alguns pássaros iam e viam ou posavam num dos braços ou na cabeça de uma estátua de papel laminado.
- E você, não tem um sonho? - perguntou, de repente, o Lápis, virando-se para a borracha.
- Tenho, claro, o de todas as borrachas comuns - respondeu ela docemente e corando um pouco.
- E qual é esse sonho?- indagou o Lápis sem saber exatamente o que poderia ser. Tentando lembrar também se ela já havia mencionado antes. E estava nesses pensamentos quando a outra respondeu.
- Ora, apagar tinta de caneta.
- Ah sim, interessante. Vi uma vez na TV, uma famosa borracha falar sobre esse desejo. Você já tentou realizar isso? - perguntou o amigo muito interessado.
- Já.
- Quantas vezes?
- Bem, duas vezes - respondeu ela meio desanimada.
- Só isso! - espantou-se o Lápis.
- Foi.
- É muito pouco, amiga - observou ele, inconformado.
- As borrachas de tinta de caneta dizem que sou muito fraca para essa tarefa - explicou a Borracha.
- Não ligue para o que elas dizem - aconselhou o Lápis.
- É que elas são muito boas, e isso me deixa envergonhada, insegura, sentido-me incapaz até mesmo de tentar qualquer coisa. Não sou um atleta como você, e muito menos tenho sua disciplina, sou mole demais - confessou a Borracha.
- Não pense assim, você é bem maior do que elas e com esforço, consegue ultrapassar suas dificuldades - declarou ele, querendo encorajar a amiga a uma melhor atitude.
- Tem outro problema, as canetas não deixam eu tentar mais. Aliás, vivem me desencorajando, dizendo que é perigoso - disse a Borracha, um pouco triste.
- Por que esse preconceito?
- Não é isso, eu acho. Aliás, tenho certeza. É porque elas dizem que eu vou me desgastar muito ao apagar a tinta de caneta.
- Ah, entendo agora! - e ficou refletindo. - Mas alegre-se, não é tão mau assim. Isso demonstra que as canetas estão até preocupadas com sua saúde e segurança.
- Na verdade, para mim é ruim mesmo, pois toda a borracha normal de grafite que se arriscar a apagar tinta de caneta fica doente ou pela metade, como se diz por aí.
- Mas tem que haver um jeito de realizar isso. Vamos descobrir, não se preocupe! - afirmou o Lápis, pensando como poderiam resolver a questão.
- E tem! - disse ela quase em seguida - treinar na tinta dos lápis de cores e de cera até que parte do meu corpo de borracha fique preparado para tinta de caneta. Disseram-me que o "judôrracha e o karatêrracha" ajudam muito.
- Então pronto, eis aí a solução.
- Só que dá muito trabalho e talvez não dê certo.
- Você consegue, é a borracha mais forte que conheço, desde as terras distantes dos rascunhos mais antigos e borrados até os livros novos e importados de exercícios. E falo, não porque é minha amiga, você sabe muito bem disso, pois sou sincero sempre - salientou o Lápis com firmeza.
- Sei bem! E obrigada. Você me convenceu, vou fazer o que for preciso. Você é meu melhor amigo. Suas palavras de incentivo foram essenciais.
- Por nada! Afinal, para que servem os verdadeiros amigos? E não me venha com essa, pois você já me ajudou muito mais, sempre. Conte comigo!
Sorriram o Lápis e a Borracha com a satisfação do bem e do bom em comum.